EnTrA. eScUtA o BaNdOnEoN qUe ChOrA
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HoMeNaGeM

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A milonga mudou-se para a rua, bem perto das portas abertas para tanta alegria.


Bernardino molhava de alfazema o suor do rosto, do cabelo, dos olhos de amor que se alagavam por ter nos braços a sua mulher.


O bandoneon chegou para brilhar à luz da lua e apertado nas mãos quentes chorou por eles. Contou a fuga e o mistério, a saudade e a viuvez, o Tango faz-se para amar, lutar e morrer mas sempre nos braços de quem se quer.


E quando o fole gemido na doçura das mãos se amarrotou e abriu, voltámos todos ao salão onde as rosas enamoradas num milagre, desabrocharam como se a noite só ali começara.

VoLvEr

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Todos correram para a porta, os homens dispostos a limpar a honra por Adelia e pela milonga, elas enfeitiçadas.


Abri caminho entre eles.


Cá fora Sarita nos braços do estranho, os pés num mal tocar do chão, olhos nos olhos, as bocas colando o hálito da saudade, tudo gira à sua volta, o mundo pára e só eles rodam, só eles dançam, só eles existem.


Cedo a minha ira, abrando o aperto da vingança, a voz de Baron sussurra um nome... Bernardino, o noivo de Sarita.

O homem partido para as Américas regressa à milonga que o fez, ao peito da mulher de escarlate que nunca mudou de vestido e que os milongueros não tiram para o Tango. Tem esperado por ele todas as noites.



Dançam como loucos, dançam pelos dias apartados, dançam como nunca vi dançar. Benzo-me.

Todos afastam o olhar por não conseguir aguentar tanta felicidade.

O eStRaNhO

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O bandoneon chorou e o soalho desapareceu sob as solas dos sapatos dos milongueros e das sombras dos vestidos das mulheres.


Agarrei a mão de Adelia e fi-la rodar nos meus dedos. Senti o seu perfume espalhar-se ao redor e senti-me feliz, hoje faço de Adelia minha, só minha.


Mas ao libertar-se a sua cintura ficou agarrada nas mãos de um estranho. Não conheço este homem, este não é dos nossos. Tomou Adelia como se a conhecesse, apertou-a junto às ancas dando-lhe a confiança do deslizar para logo a erguer ficando perto, tão perto das ventoinhas. Adelia olhou-o nos olhos e afagou-lhe o pescoço, depois deitou-lhe as unhas à cara morena fazendo o sangue espirrar até lhe sujar o peito. O estranho girou-a, doido, doido, endoidecendo Adelia e afastando os outros pares. A milonga faz-se dele.


Não consigo chegar perto mas arde-me a navalha no bolso, Adelia é minha.


Quando o tocador limpa o suor pingado sobre o fole do bandoneon, o estranho beija as mãos de Adelia e desaparece pelas portas da noite.


Sinto vergonha.

AmArIlïS

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Amarilïs. Doce Amarilïs. Venenosa Amirilïs. Amarilïs que condena o que lhe segurar o corpo, os olhos, o doce rodar na sola macia, ancas fortes de quem pede, boca que mente e desafia.


Amarilïs é virgem, menina ainda e traz nos seios a vontade da mulher, o calor que pára as ventoinhas e faz suar o sobrado. Benze-se. Antes de arranhar a milonga nos sapatos mais altos que as outras. Depois, já pecadora, nos seus desejos de cobiçar todos os machos do salão.


Amarilïs é protegida de Baron, a menina de Baron, a intocável, a que tememos olhar nos olhos e devorar-nos a alma, a diaba que se enrosca em nós como a serpente de Éden e nos deixa trémulos a repetir-lhe o nome nas noites perdidas em putas.


Eu já sonhei com Amarilïs, já lhe disse o nome baixinho... Amarilïs...

BaRoN

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De todos Baron é o mais velho, o mais sábio, o mais suave dançarino. É também o homem mais temido da milonga.


Conta-se que num confronto com um inimigo por causa de um amor lhe poupou o rosto não o marcando. Mas passou-lhe a navalha fria nos tendões dos joelhos e o desgraçado, humilhado, nunca mais dançou.


Assim é Baron. Aquele que lhe agradar terá sempre a sua benção, mas que se encomende aos infernos se tiver de o ter na esquina, chapéu branco a sombrear os olhos cerrados. É também assim que desliza pelo salão, levando o par ao êxtase, a mulher ao beijo procurado. Mas Baron nunca beija, nunca.


Todos anseiam ser Baron. Um dia hei-de ser, hei-de molhar Adelia de desejo.

CoNfIaNçA

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Não preciso de ser modesto ou humilde. Sou um dançarino de fazer parar os outros, atiçar-lhes as mulheres nos seus braços. Elas sabem que presas nos meus têm o pilar que as sustem no ar o ar, o ritmo, a boca entreaberta de sentirem apertadas sem a asfixia, todo o coração que se deve entregar no tango.


Sabem que lhes cuido o corpo, que as alindo ao poisá-las sobre a perna confiante que as desliza até ao chão sem a dor da queda ou o desprezo de serem apenas mais uma.


O meu tango é isso, fazê-las a única mulher no mundo, a que realmente importa pelo tempo do bandoneon se esmagar suave nas mãos do tocador.

AlVaRiTo MaLdItO!

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Cuspo ao dizer-lhe o nome. Desgraçado. Corno do tango. Alvarito não tem pudor pelo tango, tira-lhe o respeito todo, baila dentro e fora da milonga e fá-lo suado de vinagre de raiva.


Leva as mulheres à loucura, roça-lhes o sexo em passos picados pelo tacão que volteia e elas ficam bebedas de paixão, olham o tecto, as ventoinhas e acham que subiram ao céu. Alvarito ri alto. Delas e dos outros. Ri de mim também.


Adelia nunca lhe diz não. Fica possuída num inferno de chamas que lhe tinge o vestido e a pele, morde a boca, esquece-me. Quer seja paredes dentro quer seja nos fundos da milonga onde se empilham as garrafas e os restos de amor bebido aos goles que escorrem pelos cantos da boca.


Odeio Alvarito.


Um dia destes limpo a minha navalha na sua garganta. Palavra de Zilto.