EnTrA. eScUtA o BaNdOnEoN qUe ChOrA
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RuAs Do DeStInO

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O tempo parou. Para mim e para Amarilïs. Até talvez para a nossa vida, Baron não perdoa.


Mas se esta é uma noite decente para morrer e se todos os tangueros têm o sonho de tombar honrados na milonga, então Cristo far-me-á a vontade. Nos braços e pernas de Amarilïs.


Nunca me senti tão feliz e tão miserável como esta noite. Amarilïs. Adelia. Se perdi o amor de uma apaixonei-me como não sabía possível por outra. Da forma mais ruim e desvairada, uma noite só, um amor que dura uma noite só como por toda a vida. Amarilïs também o sabe, sinto-lhe o coração bater contra o meu peito com a lástima de quem descobre e perde no mesmo instante todo o traço que o destino nos marcou cegamente.


Condenamo-nos pela noite fora até fecharem as portas da milonga, o tango ainda pelas escadas, pela rua molhada da madrugada alta. Somos só nós dois e a lua e o destino desta rua que nos há-de ver ao amanhecer, deitados lado a lado, Baron não há-de tardar.


Somos só nós e no entanto ouvimos, vemos uma orquestra que toca para nós.

QuEm MaNdA

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As ventoinhas cansadas aguardam que a orquestra cansada se quede. Os músicos empapam os lenços brancos do suor do medo e o homem do bandoneon tem a pele ardida de sentir o aperto do fole na perna trémula.




Cheira a rosas e a medo.




Amarilïs é o diabo, aguenta Baron nos passos, aguenta-me o olhar firme quando lhe roço as coxas, acompanha-nos, não desiste, é brava, limita o espaço do corpo-a-corpo recebendo no corpo os ataques de um, o escudo do outro.




O tango. O tango vai correndo cada canto, todas as diagonais da milonga, o soalho está riscado das nossas investidas, três vezes nós. Baron puxa o braço da sua protegida e vira as costas à orquestra, leva-a de arrasto. Sinto-me vitorioso. Ganhei o espaço do salão, sou um herói.




NO!!!




Amarilïs bate o tacão, solta o pulso apertado e volta para mim. Baron não se vira. Vejo-lhe os punhos crispados a enrubescerem sob a camisa alva. Trazem-lhe o chapéu e sai.




E agora nós. O som só para nós. Amarilïs aconchega a palma da mão no meu pescoço e nos lábios ensaguentados ouço-a baixinho. Sí.

TrItAnGo


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Baron tenta desesperadamente tomar-me a cinta, as costas, mas logo que o pressinto quebro-lhe as pernas em posição de volteio segurando-lhe a coxa musculada entre as minhas. Assim ele sente o meu sexo, quem manda, quem é macho.


O bandoneon geme. Escutam-se as rosas a murchar, até as ventoinhas pararam, calor, o inferno é hoje e agora. A minha navalha dança ao compasso do meu corpo, espera que a aperte e que lhe dê cor à lâmina fria.


Amarilïs sai da multidão, arrasta as biqueiras dos sapatos, descobrem-se-lhe as pernas pelas rachas do cetim que a envolve, traz uma rosa quase morta no cabelo.


Interpõe-se.


Así se baila el tango, murmura.

Morde a rosa que arrancou e agora lhe sangra nos lábios. Passo adiante para Baron, perna atrasada entre as minhas, bailamos os três pela vida, pela honra.


Así se baila el tango, murmura.

E os espinhos ensaguentados pingam-lhe no peito, no chão da milonga, no casaco branco de Baron, nas minhas mãos.


A rosa rejuvenesce, fresca e orvalhada, o perfume do diabo enche o salão.

TaNgO dE zILtO

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Margot encheu-me a cabeça e o coração do desejo de vingança. Mas para o ter cheio deste negrume tive de o vazar de todo o amor que o enchía. O coração não sobrevive de tão cheio desta moléstia em lutas com a paixão. Ou é um ou outro.



Subi os degraus da milonga a dois e dois, escancarei as portas do salão e avancei.


Sei o que tenho de fazer.



Teodoro aparta-se de Bábá e queda-me pelo braço, aperta-me, fere-me com os olhos, sei que me avisa de que nada posso contra Baron.



Mas hoje posso, eu posso tudo.



Será que ninguém vê que Baron humilha Adelia, arrasta-lhe o vestido pelo sobrado a limpar o rasto de suor dos cabelos e a saliva que lhe fende a boca ao dizer que a faz dele?



Hoje eu posso.



Acerco-me. Agarro na mão de Adelia que se assusta. Baron queima-me o peito com o ódio que o enche, hoje eu tenho mais que ele, nada me faz mal. Afasto Adelia e dou sinal ao bandoneon para atacar.



Seguro a mão direita de Baron, o meu braço esquerdo à sua cinta e sou eu que conduzo este tango.

AnJo NeGrO

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Ouço passos de tanguera. Mas depressa me apercebo da arritmia dos pés de Margot, a coxa.


Pede-me um fumo. Nego-lhe. Pede-me um fumo da cigarrilla que chupo, deito-a ao chão, espezinho as folhas enroladas. Margot apoia-se no meu peito e empinada na perna maior que a outra suga-me da boca o fumo azul.


Empurro-a. Margot é tragédia, azar, o coxo em forma de coxa, só os homens borrachos a tiram para o tango, vai-te anjo negro. Mas Margot ri. Fala de Adelia e Baron, de como toda a milonga se seduz no par elegante e se rendem aos passos entre pernas, aos traços que riscam no sobrado encerado, aos beijos que se suspeita, darão na sala privada de Baron.


Margot sussurra e roça por mim o corpo manco, o cetim do vestido justo cheira a velho, a mal-usado, mal-amado. Diz que tenho que vingar a minha honra, ser um homem, mostrar guelra.

SoLiTáRiO

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Trago a goles de fumo a minha tristeza e raiva. Adelia dança o tango no peito colado de Baron. Escuto a milonga a incentivá-los, aplaudem-nos, dizem Brava por cada vez que se arrasta nas pernas do par e ele a sacrifica nas voltas de pé picado.


Baron deseja, Baron tem. Arrancou-me Adelia de meus braços apenas com um olhar. E ela foi, de boca vermelha, com uma rosa-carne no cabelo... Para mim não pôs flor.


Trago a goles de cigarrilla morena o ar da noite, perco o juízo nas escadas da milonga e afundo-me nos degraus gastos pelos passos passados de Sarita. Até Sarita tem o seu amor de novo. Só eu me perco solitário nos acordes da lua velhaca e ensaio o tango como dança para a morte.


Já disse: Adelia é minha, não há-de ser Baron que ma tira. Pela alma de meu Pai que está no céu.

TaNgUeRa

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O ar adensou-se num pó brilhante e muito dourado. Ao alto as ventoínhas abrandaram o seu bater e no tecto reflectíam-se os vestidos flamejantes das mulheres.


As mulheres nunca foram tão belas como esta noite. E cheirosas. Mas não de perfume comprado, era cheiro de mulher, aquele cheiro único, inesquecível, quente e ligeiramente torrado... inebriante, doido.


Adelia esteve nos meus braços, senti-lhe as costas duras, aquele vinco no meio, o cabelo a desfiar-se sobre a minha mão. E as pernas, Deus, as pernas foram cordas que amarraram as minhas, entrelaçadas, minhas, minhas... O meu coração está louco.


Devoto-me a esta milonga, ao bandoneon, a todos os que se amam neste rápido, rápido, lento, rápido passo marcado como uma sina de vidas a que nos condenamos. Devoto-me a Adelia, tanguera de mí alma.