EnTrA. eScUtA o BaNdOnEoN qUe ChOrA
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AsÍ eS aSí SeRa

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Do desencanto faz-se o encanto e deste toca-se o tango e no seu canto encantam-se os tangueros e as tangueras no salão maior da vida.


Há bandoneon e beijos. Dados no escuro do fole que se cola como bocas que se querem no extremo do desejo, do ciúme, do despeito. Depois há as mulheres. E há as rosas. E os vestidos macios que podem ser feitos de pétalas e as meias de espinhos traiçoeiros. Ou o sapato alteado na estreante da milonga. Tudo depende da mão do homem, da cintura da tanguera, do génio do tocador.


Esqueçamos tudo e encantemo-nos.


Até a ferida tem outra cor à luz do tango.

FiDeL

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O tempo de amar é também o tempo de vingar. De mostrar quem é da milonga.


Foi um enterro bonito. O bandoneon honrou o último gesto de Serena e as mulheres de vermelho choraram entre rosas frescas as dores dos espinhos da saudade cravados no coração.


Arranjou-se a força para lutar, para mostrar a Baron que é traidor e os traidores não são bem vindos a esta casa onde o mel é chão e as ventoinhas se alentam no compasso batido do amor apertado entre mãos suadas no calo da pega do bandoneon.


É tempo de tango escarlate adivinhando o sabor do sangue bebido entre goles de branca e apertos da navalha nervosa.


Somos todos combatentes, entre o giro deslizado na sola macia e o dorso desnudado temos a memória dos bravos que defenderam o salão, somos tantos, somos muitos. Fidelíssimos.

aLmA sErEnA

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Uma mulher gritou silenciando o bandoneon.


Senti a minha pele vestir-se de um mar encrespado prestes a tornar-se vagas e destas fazerem-se monstros para o ataque. Não foi só a minha lâmina que sorriu, todos os tangueros presentes cercaram o maldito.


Mas foi Bábá, a que chamam a traidora do coração, que se aproximou dele. De mãos nas ancas, baton do sangue de Serena, meias de rede que tantos apanharam. Riu-se. E depois riu-se. E ainda mais e mais alto. E de um golpe ergueu a perna esguia e na ponta do sapato arrancou-lhe o chapéu que o cobría na condição de macho.


A brilhantina não lhe segurou o orgulho. À vez aparou os golpes de naifa de todos os dançarinos fiéis à milonga. Sujou o soalho na urina do medo, nos olhos a pedirem clemência.


Agarrámos em Serena, perfumada de rum queimado, dançámos com o seu corpo morto um último TaNgO e a alma como o nome, evaporou-se leve ao Criador.

SeReNiSsImA

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A nossa paixão inundou a milonga. Não há sobreviventes que se queiram salvar, agarram-se ao som do bandoneon, deixam-se ir na maré do amor.


Cada um dos pares tangueros é o seu próprio farol. Hoje há tanta luz!


Esquecemo-nos das trevas da vingança e dos gritos do medo, somos um mar cheio que corre entre margens e as beija como os passos beijam o soalho aquecido por tantos pés, por tantos tacões que escrevem o seu nome na cera polida.


Serena abraça Amarilïs, abraça-me. Segreda-nos que Baron nos espera com os seus homens de camisa negra e fato branco, a lâmina já canta na vingança da mão trémula do ódio. Nada temo. Dançamos os três entre mãos e pernas que suam a coragem.


Sempre achei Serena rude, a do cheiro de rum queimado mas descubro-lhe agora o fogo do brio, o alcool da bravura. Arrisca-se por mim e por Amarilïs.


Um homem aproxima-se e gira Serena entre os seus braços, quebra-lhe a cinta, desampara-a no chão que se abre ao seu sangue. Parece um vestido de água cada vez mais comprido, mais largo que nos molha os pés.


O som extingue-se ao sopro de Serena. Odores de açúcar competem com as rosas mais vermelhas que nunca.