EnTrA. eScUtA o BaNdOnEoN qUe ChOrA
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ReToRnOs

 
 
 
 
 
 
 
A vida correu-me mansa neste tempo, foi-me mel igual a este chão que sagrado me persigno ao passar no deslizar dos passos cuidadosos e lhe peço perdão da ausência.
 
Tombam as águas, tempo delas. Lavo-me para aqui entrar puro e merecer o som do bandoneon, o perfume das rosas, as respostas ao que me fez falta durante as luas que vigiei pela janela enquanto me incomodava com o que fazia ao amor que sinto pela mulher que tenho em casa.
 
Uma branca, por favor.
 
Já ninguém reconhece Zilto, o homem que encarou Baron, tanguero maior de mil milongas.
 
Uma branca, por favor. E outra. Até que se tornem tantas que me afoguem o esquecer do que sou e renasça.
 
Mas Zilto. Claro.
 
 



AsÍ eS aSí SeRa

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Do desencanto faz-se o encanto e deste toca-se o tango e no seu canto encantam-se os tangueros e as tangueras no salão maior da vida.


Há bandoneon e beijos. Dados no escuro do fole que se cola como bocas que se querem no extremo do desejo, do ciúme, do despeito. Depois há as mulheres. E há as rosas. E os vestidos macios que podem ser feitos de pétalas e as meias de espinhos traiçoeiros. Ou o sapato alteado na estreante da milonga. Tudo depende da mão do homem, da cintura da tanguera, do génio do tocador.


Esqueçamos tudo e encantemo-nos.


Até a ferida tem outra cor à luz do tango.

FiDeL

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O tempo de amar é também o tempo de vingar. De mostrar quem é da milonga.


Foi um enterro bonito. O bandoneon honrou o último gesto de Serena e as mulheres de vermelho choraram entre rosas frescas as dores dos espinhos da saudade cravados no coração.


Arranjou-se a força para lutar, para mostrar a Baron que é traidor e os traidores não são bem vindos a esta casa onde o mel é chão e as ventoinhas se alentam no compasso batido do amor apertado entre mãos suadas no calo da pega do bandoneon.


É tempo de tango escarlate adivinhando o sabor do sangue bebido entre goles de branca e apertos da navalha nervosa.


Somos todos combatentes, entre o giro deslizado na sola macia e o dorso desnudado temos a memória dos bravos que defenderam o salão, somos tantos, somos muitos. Fidelíssimos.

aLmA sErEnA

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Uma mulher gritou silenciando o bandoneon.


Senti a minha pele vestir-se de um mar encrespado prestes a tornar-se vagas e destas fazerem-se monstros para o ataque. Não foi só a minha lâmina que sorriu, todos os tangueros presentes cercaram o maldito.


Mas foi Bábá, a que chamam a traidora do coração, que se aproximou dele. De mãos nas ancas, baton do sangue de Serena, meias de rede que tantos apanharam. Riu-se. E depois riu-se. E ainda mais e mais alto. E de um golpe ergueu a perna esguia e na ponta do sapato arrancou-lhe o chapéu que o cobría na condição de macho.


A brilhantina não lhe segurou o orgulho. À vez aparou os golpes de naifa de todos os dançarinos fiéis à milonga. Sujou o soalho na urina do medo, nos olhos a pedirem clemência.


Agarrámos em Serena, perfumada de rum queimado, dançámos com o seu corpo morto um último TaNgO e a alma como o nome, evaporou-se leve ao Criador.

SeReNiSsImA

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A nossa paixão inundou a milonga. Não há sobreviventes que se queiram salvar, agarram-se ao som do bandoneon, deixam-se ir na maré do amor.


Cada um dos pares tangueros é o seu próprio farol. Hoje há tanta luz!


Esquecemo-nos das trevas da vingança e dos gritos do medo, somos um mar cheio que corre entre margens e as beija como os passos beijam o soalho aquecido por tantos pés, por tantos tacões que escrevem o seu nome na cera polida.


Serena abraça Amarilïs, abraça-me. Segreda-nos que Baron nos espera com os seus homens de camisa negra e fato branco, a lâmina já canta na vingança da mão trémula do ódio. Nada temo. Dançamos os três entre mãos e pernas que suam a coragem.


Sempre achei Serena rude, a do cheiro de rum queimado mas descubro-lhe agora o fogo do brio, o alcool da bravura. Arrisca-se por mim e por Amarilïs.


Um homem aproxima-se e gira Serena entre os seus braços, quebra-lhe a cinta, desampara-a no chão que se abre ao seu sangue. Parece um vestido de água cada vez mais comprido, mais largo que nos molha os pés.


O som extingue-se ao sopro de Serena. Odores de açúcar competem com as rosas mais vermelhas que nunca.

DoNo Do MuNdO

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Todos nos olham. Estamos no disparo das bocas, do perfume das rosas, do aperto do bandoneon.


Talvez achassem que não nos voltaríam a ver na milonga, mais certo amortalhados na cegueira de um amor que se ateou num gesto e se encantou para a vida. E para a morte. Que desta já não há temor a não ser por Ele que nos guia e guarda neste tango maior de passos imprevistos e improvisados no bater descompassado do coração.


Amarilïs está mais linda que nunca, vai-lhe bem o ser mulher.


La Cumparsita por favor. A minha mulher rende-se gemida ao toque nas minhas pernas e sob a palma da minha mão arpejo-lhe as costas nuas que troçam do macio do cetim negro que enverga.


Se isto não é ser dono do mundo então nada mereço, Baron que cumpra o destino.


Por agora todos nos olham e deixam o mel do chão para quem sabe do tango.

SeM mEdO

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Da noite fez-se a madrugada e desta amante o dia ignorou-a trazendo o sol, o calor, a vida.


Se dobrámos a noite e ainda nos amamos é porque somos mais fortes que a morte.

Baron há-de vir, eu sei que vem, é uma hiena que não deixa a carne para outros. Tomar a sua menina é ter fim certo num beco escuro. Não tenho medo, muito menos depois de ter descoberto a verdade nos olhos de Amarilïs. Mas temo por ela, sei que Baron a fará sofrer penas em vida.


E do dia fez-se noite e a noite é para o tango e a milonga para quem se ama.


Entramos os dois, o bandoneon geme forte para nós. Mostremos que não há medos.

TaNgO aMoR

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Antes de tudo acabar seremos nós o nosso fim na entrega completa do mais belo TaNgO.


Não um que seja cantado por quem sentiu o amor trair-se. Ou aquele em que o bandoneon chora pelas noites sem a luz da lua na milonga. Tão pouco um tango escrito ao longe por quem desconhece o que são tangueros e tangueras nem aquele que se desfaz nos fumos enrolados de quem vê dançar e sente a inveja a comer-lhe as entranhas...


Antes de pedirmos a Deus que a nossa alma Lhe seja entregue com cuidado dar-lhe-emos o destino aqui na terra a quem o pede. Amarilïs quer ser minha e eu quero entregar o meu coração esquecendo todas as cicatrizes que tem como se fora novo outra vez.


É nesta noite que o tango se escreve.

É nesta noite que se há-de lembrar aos homens que no balcão matam as brancas em copos grossos a história de um amor golpeado, às mulheres o desejo de serem amadas como a lenda que hão-de passar de boca em boca até se transformar num nome de rosa.


Vem meu amor, dança comigo...


Amarilïs entrega-me o seu sangue de menina e faço-a mulher de Zilto.


Agora pode vir quem quiser porque nunca mais estaremos sós. Teremos o nosso TaNgO de AmOr.

RuAs Do DeStInO

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O tempo parou. Para mim e para Amarilïs. Até talvez para a nossa vida, Baron não perdoa.


Mas se esta é uma noite decente para morrer e se todos os tangueros têm o sonho de tombar honrados na milonga, então Cristo far-me-á a vontade. Nos braços e pernas de Amarilïs.


Nunca me senti tão feliz e tão miserável como esta noite. Amarilïs. Adelia. Se perdi o amor de uma apaixonei-me como não sabía possível por outra. Da forma mais ruim e desvairada, uma noite só, um amor que dura uma noite só como por toda a vida. Amarilïs também o sabe, sinto-lhe o coração bater contra o meu peito com a lástima de quem descobre e perde no mesmo instante todo o traço que o destino nos marcou cegamente.


Condenamo-nos pela noite fora até fecharem as portas da milonga, o tango ainda pelas escadas, pela rua molhada da madrugada alta. Somos só nós dois e a lua e o destino desta rua que nos há-de ver ao amanhecer, deitados lado a lado, Baron não há-de tardar.


Somos só nós e no entanto ouvimos, vemos uma orquestra que toca para nós.

QuEm MaNdA

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As ventoinhas cansadas aguardam que a orquestra cansada se quede. Os músicos empapam os lenços brancos do suor do medo e o homem do bandoneon tem a pele ardida de sentir o aperto do fole na perna trémula.




Cheira a rosas e a medo.




Amarilïs é o diabo, aguenta Baron nos passos, aguenta-me o olhar firme quando lhe roço as coxas, acompanha-nos, não desiste, é brava, limita o espaço do corpo-a-corpo recebendo no corpo os ataques de um, o escudo do outro.




O tango. O tango vai correndo cada canto, todas as diagonais da milonga, o soalho está riscado das nossas investidas, três vezes nós. Baron puxa o braço da sua protegida e vira as costas à orquestra, leva-a de arrasto. Sinto-me vitorioso. Ganhei o espaço do salão, sou um herói.




NO!!!




Amarilïs bate o tacão, solta o pulso apertado e volta para mim. Baron não se vira. Vejo-lhe os punhos crispados a enrubescerem sob a camisa alva. Trazem-lhe o chapéu e sai.




E agora nós. O som só para nós. Amarilïs aconchega a palma da mão no meu pescoço e nos lábios ensaguentados ouço-a baixinho. Sí.

TrItAnGo


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Baron tenta desesperadamente tomar-me a cinta, as costas, mas logo que o pressinto quebro-lhe as pernas em posição de volteio segurando-lhe a coxa musculada entre as minhas. Assim ele sente o meu sexo, quem manda, quem é macho.


O bandoneon geme. Escutam-se as rosas a murchar, até as ventoinhas pararam, calor, o inferno é hoje e agora. A minha navalha dança ao compasso do meu corpo, espera que a aperte e que lhe dê cor à lâmina fria.


Amarilïs sai da multidão, arrasta as biqueiras dos sapatos, descobrem-se-lhe as pernas pelas rachas do cetim que a envolve, traz uma rosa quase morta no cabelo.


Interpõe-se.


Así se baila el tango, murmura.

Morde a rosa que arrancou e agora lhe sangra nos lábios. Passo adiante para Baron, perna atrasada entre as minhas, bailamos os três pela vida, pela honra.


Así se baila el tango, murmura.

E os espinhos ensaguentados pingam-lhe no peito, no chão da milonga, no casaco branco de Baron, nas minhas mãos.


A rosa rejuvenesce, fresca e orvalhada, o perfume do diabo enche o salão.

TaNgO dE zILtO

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Margot encheu-me a cabeça e o coração do desejo de vingança. Mas para o ter cheio deste negrume tive de o vazar de todo o amor que o enchía. O coração não sobrevive de tão cheio desta moléstia em lutas com a paixão. Ou é um ou outro.



Subi os degraus da milonga a dois e dois, escancarei as portas do salão e avancei.


Sei o que tenho de fazer.



Teodoro aparta-se de Bábá e queda-me pelo braço, aperta-me, fere-me com os olhos, sei que me avisa de que nada posso contra Baron.



Mas hoje posso, eu posso tudo.



Será que ninguém vê que Baron humilha Adelia, arrasta-lhe o vestido pelo sobrado a limpar o rasto de suor dos cabelos e a saliva que lhe fende a boca ao dizer que a faz dele?



Hoje eu posso.



Acerco-me. Agarro na mão de Adelia que se assusta. Baron queima-me o peito com o ódio que o enche, hoje eu tenho mais que ele, nada me faz mal. Afasto Adelia e dou sinal ao bandoneon para atacar.



Seguro a mão direita de Baron, o meu braço esquerdo à sua cinta e sou eu que conduzo este tango.

AnJo NeGrO

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Ouço passos de tanguera. Mas depressa me apercebo da arritmia dos pés de Margot, a coxa.


Pede-me um fumo. Nego-lhe. Pede-me um fumo da cigarrilla que chupo, deito-a ao chão, espezinho as folhas enroladas. Margot apoia-se no meu peito e empinada na perna maior que a outra suga-me da boca o fumo azul.


Empurro-a. Margot é tragédia, azar, o coxo em forma de coxa, só os homens borrachos a tiram para o tango, vai-te anjo negro. Mas Margot ri. Fala de Adelia e Baron, de como toda a milonga se seduz no par elegante e se rendem aos passos entre pernas, aos traços que riscam no sobrado encerado, aos beijos que se suspeita, darão na sala privada de Baron.


Margot sussurra e roça por mim o corpo manco, o cetim do vestido justo cheira a velho, a mal-usado, mal-amado. Diz que tenho que vingar a minha honra, ser um homem, mostrar guelra.

SoLiTáRiO

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Trago a goles de fumo a minha tristeza e raiva. Adelia dança o tango no peito colado de Baron. Escuto a milonga a incentivá-los, aplaudem-nos, dizem Brava por cada vez que se arrasta nas pernas do par e ele a sacrifica nas voltas de pé picado.


Baron deseja, Baron tem. Arrancou-me Adelia de meus braços apenas com um olhar. E ela foi, de boca vermelha, com uma rosa-carne no cabelo... Para mim não pôs flor.


Trago a goles de cigarrilla morena o ar da noite, perco o juízo nas escadas da milonga e afundo-me nos degraus gastos pelos passos passados de Sarita. Até Sarita tem o seu amor de novo. Só eu me perco solitário nos acordes da lua velhaca e ensaio o tango como dança para a morte.


Já disse: Adelia é minha, não há-de ser Baron que ma tira. Pela alma de meu Pai que está no céu.

TaNgUeRa

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O ar adensou-se num pó brilhante e muito dourado. Ao alto as ventoínhas abrandaram o seu bater e no tecto reflectíam-se os vestidos flamejantes das mulheres.


As mulheres nunca foram tão belas como esta noite. E cheirosas. Mas não de perfume comprado, era cheiro de mulher, aquele cheiro único, inesquecível, quente e ligeiramente torrado... inebriante, doido.


Adelia esteve nos meus braços, senti-lhe as costas duras, aquele vinco no meio, o cabelo a desfiar-se sobre a minha mão. E as pernas, Deus, as pernas foram cordas que amarraram as minhas, entrelaçadas, minhas, minhas... O meu coração está louco.


Devoto-me a esta milonga, ao bandoneon, a todos os que se amam neste rápido, rápido, lento, rápido passo marcado como uma sina de vidas a que nos condenamos. Devoto-me a Adelia, tanguera de mí alma.

HoMeNaGeM

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A milonga mudou-se para a rua, bem perto das portas abertas para tanta alegria.


Bernardino molhava de alfazema o suor do rosto, do cabelo, dos olhos de amor que se alagavam por ter nos braços a sua mulher.


O bandoneon chegou para brilhar à luz da lua e apertado nas mãos quentes chorou por eles. Contou a fuga e o mistério, a saudade e a viuvez, o Tango faz-se para amar, lutar e morrer mas sempre nos braços de quem se quer.


E quando o fole gemido na doçura das mãos se amarrotou e abriu, voltámos todos ao salão onde as rosas enamoradas num milagre, desabrocharam como se a noite só ali começara.

VoLvEr

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Todos correram para a porta, os homens dispostos a limpar a honra por Adelia e pela milonga, elas enfeitiçadas.


Abri caminho entre eles.


Cá fora Sarita nos braços do estranho, os pés num mal tocar do chão, olhos nos olhos, as bocas colando o hálito da saudade, tudo gira à sua volta, o mundo pára e só eles rodam, só eles dançam, só eles existem.


Cedo a minha ira, abrando o aperto da vingança, a voz de Baron sussurra um nome... Bernardino, o noivo de Sarita.

O homem partido para as Américas regressa à milonga que o fez, ao peito da mulher de escarlate que nunca mudou de vestido e que os milongueros não tiram para o Tango. Tem esperado por ele todas as noites.



Dançam como loucos, dançam pelos dias apartados, dançam como nunca vi dançar. Benzo-me.

Todos afastam o olhar por não conseguir aguentar tanta felicidade.

O eStRaNhO

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O bandoneon chorou e o soalho desapareceu sob as solas dos sapatos dos milongueros e das sombras dos vestidos das mulheres.


Agarrei a mão de Adelia e fi-la rodar nos meus dedos. Senti o seu perfume espalhar-se ao redor e senti-me feliz, hoje faço de Adelia minha, só minha.


Mas ao libertar-se a sua cintura ficou agarrada nas mãos de um estranho. Não conheço este homem, este não é dos nossos. Tomou Adelia como se a conhecesse, apertou-a junto às ancas dando-lhe a confiança do deslizar para logo a erguer ficando perto, tão perto das ventoinhas. Adelia olhou-o nos olhos e afagou-lhe o pescoço, depois deitou-lhe as unhas à cara morena fazendo o sangue espirrar até lhe sujar o peito. O estranho girou-a, doido, doido, endoidecendo Adelia e afastando os outros pares. A milonga faz-se dele.


Não consigo chegar perto mas arde-me a navalha no bolso, Adelia é minha.


Quando o tocador limpa o suor pingado sobre o fole do bandoneon, o estranho beija as mãos de Adelia e desaparece pelas portas da noite.


Sinto vergonha.

AmArIlïS

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Amarilïs. Doce Amarilïs. Venenosa Amirilïs. Amarilïs que condena o que lhe segurar o corpo, os olhos, o doce rodar na sola macia, ancas fortes de quem pede, boca que mente e desafia.


Amarilïs é virgem, menina ainda e traz nos seios a vontade da mulher, o calor que pára as ventoinhas e faz suar o sobrado. Benze-se. Antes de arranhar a milonga nos sapatos mais altos que as outras. Depois, já pecadora, nos seus desejos de cobiçar todos os machos do salão.


Amarilïs é protegida de Baron, a menina de Baron, a intocável, a que tememos olhar nos olhos e devorar-nos a alma, a diaba que se enrosca em nós como a serpente de Éden e nos deixa trémulos a repetir-lhe o nome nas noites perdidas em putas.


Eu já sonhei com Amarilïs, já lhe disse o nome baixinho... Amarilïs...

BaRoN

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De todos Baron é o mais velho, o mais sábio, o mais suave dançarino. É também o homem mais temido da milonga.


Conta-se que num confronto com um inimigo por causa de um amor lhe poupou o rosto não o marcando. Mas passou-lhe a navalha fria nos tendões dos joelhos e o desgraçado, humilhado, nunca mais dançou.


Assim é Baron. Aquele que lhe agradar terá sempre a sua benção, mas que se encomende aos infernos se tiver de o ter na esquina, chapéu branco a sombrear os olhos cerrados. É também assim que desliza pelo salão, levando o par ao êxtase, a mulher ao beijo procurado. Mas Baron nunca beija, nunca.


Todos anseiam ser Baron. Um dia hei-de ser, hei-de molhar Adelia de desejo.

CoNfIaNçA

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Não preciso de ser modesto ou humilde. Sou um dançarino de fazer parar os outros, atiçar-lhes as mulheres nos seus braços. Elas sabem que presas nos meus têm o pilar que as sustem no ar o ar, o ritmo, a boca entreaberta de sentirem apertadas sem a asfixia, todo o coração que se deve entregar no tango.


Sabem que lhes cuido o corpo, que as alindo ao poisá-las sobre a perna confiante que as desliza até ao chão sem a dor da queda ou o desprezo de serem apenas mais uma.


O meu tango é isso, fazê-las a única mulher no mundo, a que realmente importa pelo tempo do bandoneon se esmagar suave nas mãos do tocador.

AlVaRiTo MaLdItO!

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Cuspo ao dizer-lhe o nome. Desgraçado. Corno do tango. Alvarito não tem pudor pelo tango, tira-lhe o respeito todo, baila dentro e fora da milonga e fá-lo suado de vinagre de raiva.


Leva as mulheres à loucura, roça-lhes o sexo em passos picados pelo tacão que volteia e elas ficam bebedas de paixão, olham o tecto, as ventoinhas e acham que subiram ao céu. Alvarito ri alto. Delas e dos outros. Ri de mim também.


Adelia nunca lhe diz não. Fica possuída num inferno de chamas que lhe tinge o vestido e a pele, morde a boca, esquece-me. Quer seja paredes dentro quer seja nos fundos da milonga onde se empilham as garrafas e os restos de amor bebido aos goles que escorrem pelos cantos da boca.


Odeio Alvarito.


Um dia destes limpo a minha navalha na sua garganta. Palavra de Zilto.

SoLo

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Sarita está do lado de fora. À espera. Como sempre. Sarita espera desde sempre o seu par, dizem que eu não sei, que se encantou por uma americana que um dia veio conhecer a milonga e com ela partiu, deixando Sarita noiva e viúva.


Todos se apiedam de Sarita mas nenhum a tira para o tango.


Nem eu. Sei que perdería Adélia para sempre nesse dia.


Sarita fica do lado de fora como uma estátua que admiramos, cumprimentamo-la, mas ela nem nos vê, olha a noite vermelha de sorriso nos lábios.


Tenho a certeza que o que lhe tinge a boca não é baton, é sangue de desespero.

A orquestra toca e ela lá fora.

BáBá E tEoDoRo

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Toda a gente sabe que Teodoro é um desgraçado. Ama aquela mulher de morte. Ama de morte aquela mulher, ela há-de matá-lo, se é que não o faz todos os dias. Mata-o, enterra-o e cospe-lhe na terra que lhe tapa a boca.


Teodoro sabe que Bábá é uma rameira, que vai com qualquer um. Por vezes por dias, depois volta para Teodoro. Só ele é santo para lhe perdoar e fazer o milagre de a honrar como uma deusa.


Todos sabem.


Mas todos sabem também, que assim que a sanfona ataca, Bábá se reduz à mulher amante, à mulher presa nas mãos e nos olhos de Teodoro e mais nenhum no salão lhe tira o fôlego como ele, e toda a gente os admira e inveja os passos, os nós que os atam invisivelmente a um amor que não tem de ser explicado.

SeReNa

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Serena cheira sempre a rum queimado.


Quando dança e aquece, o perfume embebeda e das vezes que bailei com ela tive a estranha sensação que me quería dobrar, domar, nos volteios cheguei a sentir a banda a afastar-se dos acordes mas quando parámos, vi que era tudo coisa da minha imaginação.


Muito calor. E o cheiro queimado de Serena.


Habitualmente não danço com ela. Aflige-me a rudeza dela. É grosseira. Acho que Serena é bruxa, gosta de força, de violência, o tango à bruta, sinto-lhe as pernas a baterem no meu sexo e embora não me faça doer, parece que me magoa no pescoço, aqui na maçã de Adão.


Ela gosta dos gajos de navalha, dos gajos que lhe apertam a cintura e a batem contra o peito deles e depois no fim a largam no meio da milonga, desprezo, ela gosta disso.


Sou macho mas não se faz isso a quem faz os volteios como Serena. Deve ser por isso que cheira a queimado.

MuChA sUeRtE

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O soalho foi bem raspado, encerado, polido, ainda não está ferido de traços, curvas, meias luas cheias de um crepusculo que é a luz necessária. O resto alumia-se de cigarros enrolados entre dedos suados com cheiro de sexos excitados e os brilhantes dos vestidos justos das meninas.


Espero que Adelia venha.
Quando vem é bonito o salão, mais bonito. E se Margot também vier, Adelia ainda será mais bonita, a mais bela da milonga.
Margot é carrasco, o sapato com cunha para lhe dar o mesmo tamanho da outra perna atira para os braços dos homens borrachos uma cegueira de que só se arrependem no dia seguinte.


Está tudo muito bem.

O ar está fresco, as ventoinhas ouvem-se suave a bater o mel do tecto. Tarde, tarde nem farão esvoaçar os cabelos soltos das rabonas dos homens nem consolo ao calor entre pernas das meninas.


Talvez tenha sorte esta noite.
Talvez me chamem para acender um cigarro e Adelia tenha ciúmes.
Haverá tango.

FlOrEs

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Por aqui as flores só aguentam uma noite. Murcham. Queimam-se. É do fogacho das notas ou será da ardência das meninas, seja lá o que for, existem por uma noite, perfumam por uma noite e depois morrem.

Ficam belas sob o fumo dos cigarros e dos charutos mas onde as prefiro ver a definhar é no cabelo das dançarinas. Melhor, quando raramente uma delas prende a rosa vermelha entre lábios... Fica-se a saber que há namoro, inquietação.
Nessas noites em que as flores fazem de cartas ou de recadinhos dança-se melhor, o tango incendeia mesmo quem está em guerra, que a milonga é muito mais que um salão de baile.
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Não é para todos..
Assim como as flores morrerem. Também não o fazem por todos, mesmo que sangrem de tantos passos, mesmo que haja lua cheia.

BaNdOnEoN

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Es la estrella más hermosa.


Não há milonga sem o aperto entre braços dos sons gemidos do bandoneon. É a mulher que sufocamos nas mãos e abrimos ao peito para lhe morder a essência e conjugar na nossa batida o descompasso da paixão.


São sons vermelho e negro, tirania e amor, navalha e lágrimas. Tudo deitado sobre o joelho enquanto as pernas rendadas fazem de tom trágico nas cartas riscadas pelo soalho do salão.


Aquí es Tango. Tango Bazar.